Testemunho de uma viagem ao Irão

À PROCURA DE VOO

Sempre tivemos uma enorme curiosidade pelo Irão, desde os tempos que se ouvia falar do Império Persa nas aulas de História. Temos sempre seguido notícias do Irão nos jornais ao longo dos anos, e mesmo comprado livros como o 'Out of Iran: One Woman's Escape from the Ayatollahs' de Sousan Hazadi, de maneira que estamos a par do que se passou no país depois da Revolução de 1979, com a queda do pró-Americano Xá Pahlevi, substituído pelo profundamente religioso Ayatollah Khomenei. A predominância do nome do país nas notícias sobre assuntos nucleares nos jornais, só vem a aguçar ainda mais a curiosidade.

Tendo viagem marcada para o Dubai, estudámos a possibilidade de dar um 'saltinho' ao Irão, que fica do outro lado do golfo Pérsico. Muitas das companhias aéreas iranianas até têm 'site' mas fazer reserva é complicado: o site está em Farsi. Não ajudava o facto de se estar a recelebrar o Noruz, altura comemorativa da passagem de ano segundo o calendário Persa. A Iranair era bastante cara, e a Saha Air, única no mundo a voar Boeing 707 como os que faziam Caracas-Porto Santo não fazia a rota Dubai-Teerão, apenas voos domésticos. O Irão dá visto automaticamente a cidadãos da União Europeia por 7 dias - desde que não haja um carimbo de Israel lá pelo meio, como quase todos os países muçulmanos fazem.

LUZES DO IRÃO
Andando pelo Dubai de carro à noite à beira-mar com um motorista filipino vimos umas luzes no horizonte. Perguntámos-lhe se era alguma ilha, respondeu-nos que era mesmo o Irão. Ali mesmo á nossa frente ficamos com água na boca. Disse-nos que podíamos ir de barco, que levava duas horas, ou ir de avião a uma ilha paradísiaca iraniana, Kish. Garantiu-nos que era boa para visitar e que já lá tinha ido quatro vezes. A citada ilha, parte da província de Hormozgan, tem 91,5km2 de área, e é casa de cerca de 20000 pessoas, recebendo anualmente perto de um milhão de visitantes. Fora os imigrantes nos países das redondezas que aí dão um 'salto' para revalidar o visto, é um paraíso para os iranianos com dinheiro. É uma 'Free Zone' onde se vende tudo o que é proibido na parte continental, na maioria produtos ocidentais onde se incluíam americanos.

A única companhia que fazia Dubai-Kish era a Kish Airline, que não vende on-line. Descobrimos uma agência de voos para destinos islâmicos, mas estava sempre fechada, até que um dia lá passámos e nos venderam por 110 euros uma ida e volta no mesmo dia, com hotel e tudo. Do hotel disseram-nos que era para imigrantes que tinham de sair do Dubai para revalidar o visto e lá iam ao Irão, ficavam uns dias (imaginamos 10 num quarto) e voltavam ao fim de um mês poupando os 600 euros que custaria um voo para o Paquistão, por exemplo.

Como entusiastas da aviação o facto de irmos voar numa nova companhia era extremamente aliciante, e ainda mais num Fokker 50 em que nunca tínhamos voado. A Kish Airline teve um acidente fatal no Sharjah em 2006 justamente com um F-50 mas nada assinalar desde então.

VOO PARA KISH No aerporto embarcámos no Terminal 2, destinado a rotas islâmicas: Badgad, Teerão, Kandahar, Bandar Abbas, Amman, Islamabad e outros poisos a que o europeu não está habituado a ver nos seus aeroportos. Muitas mulheres com o véu, mas fora isso tudo normal.

Vale a pena mencionar que era distribuída uma revista no aeroporto, a 'Voyager Dubai', sobre viagens. Tinha um artigo sobre a Madeira, ocupando duas páginas centrais. Grande iniciativa de promoção dado que lá passam 41 milhões de passageiros por ano, 20 vezes mais que na Madeira.

Esperávamos um 'terceiro mundo' ao entrar no Fokker, mas concretizou-se o contrário. Nada de galinhas soltas, tudo em ordem, tripulação falava inglês, na cabine duas mulheres apenas, com véu mas sorridentes e com ar profissional. Não vimos ferrugem no exterior do avião, e no interior funcionavam as luzes individuais, tinha safety cards em todos os lugares, e estava limpo. Descolámos rumo a Kish, num voo de 45 minutos, no qual não passámos dos 12 000 pés de altitude. Tivemos direito a um sumo e uns aperitivos, estes 'made in Iran'. Tinham prazo de validade, símbolo da reciclagem e descrição dos ingredientes, corantes incluídos.

Na aproximação apercebemo-nos que Kish é muito semelhante ao nosso Porto Santo, tanto em dimensão como em aspecto. Seca e árida com vegetação rasteira, quase plana na sua extensão e delimitada por belas praias de um lado da ilha.

Ao aterrarmos deparámos com um 'Welcome to the beautiful Kish Island' e um jardim bem cuidado.

TENSÃO NO AEROPORTO
Reparei que as restantes mulheres iam vestidas à ocidental, com tops. Achei que estava muito coberta, mas tinham-nos avisado na agência que eu teria que vestir o traje islâmico quando lá chegássemos. Inicialmente pensei que tinham exagerado. Mal entrámos no terminal, um velhote de mau aspecto aponta para uma sala onde tinha um armário com batas azuis escuras. Tal como na mesquita em Abu Dabhi, achei graça ao vestir o traje, mas enquanto na mesquita o traje era semelhante ao dos locais, aqui parecia um saco de batatas, com linhas penduradas e sem forma nenhuma. Vesti-o e coloquei a echarpe na cabeça, como imposto pelo guarda. Até aqui nada de mais. Coloquei-me na fila do controlo de passaporte atrás do Zé, até um guarda com expressão rude, apesar de muito novo, me chamou. Desloquei-me até ele que quase me arrancou o passaporte. Disse que estava em turismo, mas ignorou-me por completo. Mandou-me outra vez para a fila. Ao fim de um bocado a olhar para mim, pede-me novamente para chegar junto dele, e tira-me o passaporte e volta a entregar-me. Pela terceira vez, chama-me (e eu já não estava a achar graça nenhuma...) e foi até ao balcão falar com o colega. Depois, vai falar com outro velhote que está a guardar os passaportes e bilhetes dos imigrantes que estão para renovar o visto no Dubai.

O tal velhote chama-me, fica com o passaporte e o bilhete de regresso, escrevendo um número qualquer lá. Sinto que estou a falar para as paredes, dado que não ligam minimamente ao que eu digo. O Zé ao reparar que não estou a conseguir convencê-los, intervém, afirmando que sou a sua mulher e que estamos para fazer turismo e não para renovar visto nenhum. Ainda demoraram um pouco a ouvi-lo, mas depois devolveram-me o passaporte. Engraçado que ele disse a mesma coisa que eu, mas enquanto fui completamente ignorada, ele foi ouvido e saímos com destino à cidade.

ANO 1389
Reparámos que o carimbo que nos puseram no passaporte tem a data de 12-1-1389, apesar de estarmos em pleno dia das mentiras de 2010.

O mesmo se via nos bancos, até nos painéis eletrónicos dos câmbios. Já estivemos na China, e temos amigos judeus, e tanto nesses países como nos EAU, o calendário religioso local é considerado apenas uma questão tradicional e cultural. Regem-se pelo mesmo calendário que nós quando se trata de negócios, mas para os iranianos é tida como referência a Hegira fuga do profeta Maomé de Meca para Medina no nosso ano 622 D.C. O primeiro dia do ano é o dia a seguir ao início da Primavera, neste caso 22 de Março. A título de curiosidade, nos tempos do Xá Pahlevi, chegou a ser o dia de nascimento de Ciro a origem do calendário, de modo em 1976 a data Persa situava-se em 2535, algo revertido três anos mais tarde na altura de Revolução Islâmica que colocou o Ayatollah Khomenei no poder. Existem vários centros comerciais, alguns deles do tamnho do nosso Madeira Shopping só de produtos ocidentais. No 'Pardise Market' (escrito assim, com erro) estava um Ford Mustang americano à porta, encerado por um miúdo, ao lado de um clone do McDonalds com batatas fritas e hamburgers.

FALSIFICAÇÕES
Ficámos surpreendidos com os preços das marcas de luxo, até repararmos que numa loja Burberrys vendiam Channel, na Armani vendiam Louis Vuitton, e assim por diante. Ao vermos aqueles preços, pechinchas mesmo, resolvemos investigar melhor, e só depois percebemos que eram falsificações. Uma mala Louis Vuitton 'made in China' por 25 euros...

A Zara e Mango também tinham direito ao seu espaço e descobrimos várias peças com os preços em Euros, dando a impressão que teriam estado em lojas europeias. Ainda encontrámos algumas peças made in Portugal, com o preço em euros.

Apesar desta imitação de luxo, o centro comercial tinha um aspecto deprimente. As roupas e sapatos amontoados, sem uma exposição atractiva. Algumas tinham um balcão e tínhamos que solicitar o que queríamos ao funcionário. De qualquer modo, não fomos para ali com o intuito de fazer compras e resolvemos sair para explorar mais a ilha.

MULHERES VESTIDAS NA PRAIA
Fomos até à praia, lindíssima com área clara e água azul como nos mares onde há coral. Havia pouca gente, quase todos sentados na areia junto à água ou em bancos dentro de umas estruturas tipo os nossos coretos. Na água apenas homens, as mulheres ficavam sentadas na areia vestidas de cima abaixo como andam na rua. Mas enquanto as mulheres têm que andar cobertas da cabeça aos pés, os homens tinham toda a liberdade. Não era permitido troca de beijos entre um homem e uma mulher, mas entre dois homens era perfeitamente normal - no rosto, atenção… Nos mapas que se viam da Ilha está identificada uma zona com 'Women can swim'. Cheios de curiosidade para comprovar esse elevado grau de liberdade que se auto-atribui Kish, deslocámo-nos a essa zona. Imaginávamos que poderia ser possível usar fatos de banho como em algumas praias no Dubai, ou um Burquini. Que ingenuidade nossa! A Lei é a Lei, traje islâmico é para usar na rua, seja dentro de água ou não.

O REGRESSO
Como era sexta-feira, dia de descanso islâmico estava quase tudo fechado e com o calor insuportável que se fazia sentir, resolvemos antecipar o voo por duas horas. Foi aí que nos apercebemos ainda mais que estávamos num mundo paralelo. Apesar de haver bastantes caixas ATM, nenhuma delas aceitava redes não iranianas. VISA Electron, AMEX, Mastercard, nada. Calhou que tínhamos Dihrams dos EAU, plenamente aceites, mas gostámos de levar uns Rial Iranianos como colecção. Chamámos um taxi, sem taxímetro, mas limpo e com um condutor civilizado, que pouco falava inglês. Queríamos pagar-lhe com 50 dirhams (10 euros) e o homem ficou tudo preocupado porque não tinha troco. Achámos estranho não querer aldrabar uns turistas como se faz em todo o lado, e não querer dar o troco na moeda dele. O homem estava convencido que exigiríamos Dirham, e ficou todo aliviado quando demos pulos de alegria com a cara carrancuda do Ayatollah vista pintada em paredes com mensagens patrióticas e em retratos. O Rial tem um câmbio de 1 para 1300 em relação ao Euro de modo que recebemos uma de 50000 RI.

REGRESSO
No aeroporto compramos uns doces de amênoda e um senhor humilde ficou também estupefacto de aceitarmos Rials. As pessoas não eram mal-educadas nem antipáticas, pareciam apenas desiludidas e oprimidas. O Irão não é um terceiro mundo tecnológico, ao contrário do que se possa pensar. Tem um sistema próprio de cartões de embarque com código de barras, quatro redes de telemóveis, e o terminal tinha wifi de borla. O facebook e o twitter estavam censurados mas o resto estava acessível.

Ao descolar, foi com alívio que vimos o chão se afastar de nós, e o saber que voltávamos ao 'nosso mundo', sensação confirmada apenas quando passámos o controlo de passaportes no Dubai. Mas antes de sair do Irão, tive de devolver a fatiota, esclarecido o mistério de porque não tinham medo que não devolvêssemos o artigo...

No DN:

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